O Contraste do Branco

15:30





O ambiente estava agitado, embora a energia fosse tranquila. Pessoas iam e vinham, conversaram, riam, bebiam. Tudo parecia bom, não existiam preocupações. Tudo estava bastante normal, de forma que aquilo que mais chamava sua atenção era a piscina.

A piscina estava toda iluminada, variando em diferentes tons de luzes que moldavam a água. Sua superfície estava plena, não se movia. Somente o que quebrava seus padrões de simplicidade eram as peças de roupas flutuando sobre o limiar entre a água e o ar, se estendendo em diversos níveis ate o fundo. Conviviam ali todos os tipos de roupas. Blusas, vestidos, biquínis, bermudas, calças compridas. Algumas grandes, outras pequenas, cada uma de uma cor diferente.
Ela se sentou na borda da piscina e colocou a ponta do dedo do pé para dentro. A temperatura era agradável. Amena. Combinava com aquela noite quente de quase-verão carioca.

Pouco a pouco, ela foi se dando conta de toda aquela agitação, que embora não fosse sua internamente, tomava conta de todo o espaço. As pessoas iam se destacando em meio à multidão e, de um impulso espontâneo, se despiam completamente, atirando-se em um banho de incontáveis personalidades a serem incorporadas. Entravam puros, limpos, intocados. E saiam de lá molhados de experiências novas que não tinham certeza se eram deles realmente ou se eram apenas sonhos distantes.
Pessoa atrás de pessoa interferia no ritmo tranquilo da água, agitando-a em busca de novas identidades e historias.

Até que, em um momento qualquer, que não poderia ser outro, com um impulso ela se pôs de pé. Então teve certeza: não tinha como fugir de fazer parte do papel que era viver. Assistir a uma peça não era suficiente; era preciso subir no palco e incorporar seu destino.

Primeiramente, soltou o cabelo. Não queria nada a prendendo. Os fios, cada um de seu tamanho específico, caíram, moldando seu rosto e acariciando seu pescoço e seus ombros. Tinham um cheiro suave e familiar que estabilizou as batidas de seu coração, embora elas continuassem incessantes e firmes.
Tirou então sua blusa, passando um braço de cada vez pelas aberturas, logo antes de passar também a cabeça. Sentiu um leve frio nas costas e seus pelos se arrepiaram por alguns instantes. Jogou a blusa no chão, que caiu ao lado de seus chinelos amarelos já molhados pela proximidade com as bordas da piscina.
Embaixo de seu sutiã, seus mamilos estavam levemente contraídos, resultado do ar que acariciava suas costas. Quando o sutiã também caiu no chão, eles se contraíram ainda mais.
Sua saia deslizou, correndo junto a suas pernas e marcando um círculo ao seu redor, como se ninguém pudesse toca-la enquanto estivesse naquela posição.
Depois que tirou a calcinha, esperou uma fração de segundo, deixando por um instante muito rápido e profundo, todos os olhos moldarem seu corpo e a admirarem, em seu estado mais natural.
Nua, em meio a uma multidão vestida de personalidades e papéis.  

Pulou então na água, se entregando totalmente a um mundo novo. Deixou-se afundar em meio a roupas e foi totalmente abraçada pela agua que cortava o efeito da gravidade, fazendo-a imaginar a sensação de voar. De pertencer ao todo e não de ser controlada por ele.
Quando voltou a superfície para respirar, percebeu que seus pulmões precisavam de ar tanto quanto seu coração precisava bater: rápido e intenso. Cada sensação, cada célula de seu corpo era observada. Não existia nada além do que se era ali.
Voltando a se tranquilizar, deixou seu corpo livre boiar entre duas realidades que se chocavam de forma harmônica.

Boiou até ser encontrada por uma camisa de botão. Esta trouxe a lembrança de um passado (distante?) em que se arrumava todos os dias para ir ao trabalho, manipulada por forças invisíveis que, de alguma forma, a controlavam sem que ela percebesse. Ela colocou a camisa, fechou o botão do meio, e deixou-se levar brevemente pela sensação de aprisionamento que aquela camisa trazia, embora sentisse uma leve pontada de poder e satisfação. Mas aquele sentimento era breve, e logo não teria mais a mesma importância do começo, substituído por outros desejos maiores.
Tirou a camisa e mergulhou o mais fundo que podia na piscina, abrindo os olhos para acompanhar os vultos coloridos que se confundiam a sua volta. Estendeu a mão e encontrou um jaleco branco, máscara perfeita para um médico bem sucedido. Como deveria ser bom ter uma profissão tão linda! Poder ajudar as pessoas que mais precisavam e ser prestigiado por todos. Deixou-se levar por aquela fantasia, cobrindo todo seu corpo em uma linda ilusão. Mas, assim como a primeira, essa também se foi quando deixou de fazer sentido.
Blusas e bermudas em cores e tamanhos diferentes tomavam-na em nostalgias e esperanças, expectativas e desilusões. Todas eram lindas e tristes ao mesmo tempo. Presentes e distantes. Todas moldavam uma parte de si, mas não a completavam. Ela não se identificava profundamente com nenhuma dessas peças. Eram todas invenções.

Então se decidiu. Colocou um braço, depois o outro, e por fim a cabeça. Cobriu seu tronco ate as coxas por uma camiseta. Branca. Leve. Pura. Assim como a falta de identidade. Assim como todas as identidades juntas em uma só.

Estava pronta para voltar ao mundo que a chamava suavemente, ao que os outros chamavam de realidade, embora ela achasse que este mundo era apenas uma parte do seu mundo. Subiu até o ultimo degrau da piscina e lá fechou os olhos por um instante. A camiseta a preservava, ao mesmo tempo em que moldava toda sua silhueta. Os seios eram contornados pelo tecido suave, moldando-nos como mãos que a acariciavam. Embora a camiseta fosse de natureza larga, ainda assim contornava sua cintura, agarrando-se ao corpo molhado em alguns pontos específicos.
A parte de trás era a única mais esticada, acabando pouco antes do limite de suas pernas, e deixando-o aparecer levemente quando ela se movia.
Os cabelos soltos escorriam, formando gotas que percorreriam todo seu corpo, ouvindo o sussurro de cada história contida em sua existência materializada.

Algumas pessoas, as que não estavam perdidas em seus mundos e ocupadas demais, observavam e entendiam o momento tão especial. Mas o mundo dela estava completo com sua própria existência.

Com o pé em terra firme, sentindo a energia do chão subir por entre os dedos e ir de encontro com a agua que escorria por suas pernas, ela sorria.
Estava transbordando, presa ao nada e a tudo. Podia ser quem quisesse ser. E por isso decidia não ser nada especifico, porque ser, apenas, era suficiente.

Ela era todas as peças de roupa. Ela tinha em si todas as máscaras que se era possível ter. Mas, acima de tudo, ela não precisava de nenhuma delas.


O branco bastava para a plenitude de seu ser.  

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