Princípio
14:01
No começo, só existia a Morte.
A Morte, por sua vez,
existia plena em sua solidão, que não a incomodava. Os dias a pertenciam, da
mesma forma que as noites. O tempo não importava, pois tudo era eterno, e tudo
estava a seu serviço. Ela era o todo, assim como não era nada, pois nada a
completava.
Em uma era na qual a Morte
era onipresente na Terra, o silêncio era extraordinário. Havia pureza, já que a
luz nada mais era do que a própria luz; e a água nada mais era do que a própria
água; e a Terra nada mais era do que a própria Terra. Essa realidade em que as
coisas simplesmente eram elas mesmas irradiava uma tranquilidade
transcendental.
A Morte conhecia tudo que
existia, e quando descobria algo que não conhecia, ficava tão empolgada que rapidamente
a tomava para si, voltando ao seu estado natural de contemplação.
Dessa forma, um dia
qualquer, andando pelos cenários que tanto conhecia (e possuía), a Morte se
deparou com uma coisa esquisita.
Não era nada que ela já
tivesse dado um nome antes, e, portanto, a desconhecia completamente. Com um
impulso natural, a Morte quis tocar aquela nova coisinha verde que transcendia
a força da terra que a devia prender e desabrochava em novas formas nunca
vistas antes. Queria pega-la para si, que era a Senhora de tudo que havia.
Mas, pela primeira vez desde
os primórdios da existência, aquela coisa se desfez em suas mãos,
transformando-se por completo e perdendo sua cor, sua luz e sua forma de ser.
A Morte ficou desesperada
por algum tempo, sem entender o que havia se passado. Pela primeira vez, alguém
havia desafiado sua vontade absoluta. Sentiu o que era angústia e descobriu o
que era solidão. Queria voltar a ser dona de tudo, e queria que fosse do seu
jeito, como sempre havia sido. Estava tomada por conflitos.
Seria possível que existisse
algo mais forte do que ela?
Presa em sua indignação, a
Morte se fechou e chorou por tempo que não saberia definir.
Quando finalmente conseguiu
vencer seus conflitos interiores, levantou-se e percebeu que estava coberta de
trevas. Tudo aquilo que conhecia estava apagado. A única coisa que conseguia
enxergar era uma luz que definia uma linha fixa no horizonte, como se, naquele
momento, a Terra que tanto conhecia estivesse divida entre Dia e Noite.
Timidamente, a Morte
caminhou em direção àquela linha, sempre cautelosa e atenta, em meios às trevas
que a dominavam. Felizmente, ela conhecia cada caminho e cada pedra, e
conseguiu chegar à linha do horizonte não muito depois.
Ficou parada no limite entre
a escuridão e aquele novo mundo que se abria a sua frente: uma confusão de
cores e cheiros, formas das mais diversas possíveis, explosões de novos barulhos, novos
movimentos, novas formas de existência. Estava fascinada. Queria pegar tudo
aquilo para si, mas como Senhora de sua própria sabedoria, agiu com cuidado,
para não repetir os mesmos erros que já cometera antes em um passado distante e
nebuloso.
E foi em meio a esse fascínio
que, pela primeira vez, a Morte sentiu o que era amor. Ela amava cada ser que
habitava aquele mundo estranho. Amava cada árvore que agora crescida trazia uma
energia que jamais havia experimentado. Amava cada animal que jamais pensara em
inventar. Amava cada pequena sincronia que existia naquele universo bagunçado e
incrível.
Mas, acima de tudo, ela
amava a essência daquilo que ela não era. Sentia que precisava da Vida como
nunca havia precisado de nada antes. Precisava da Vida para ser um inteiro,
pois havia existido até então sem saber que era apenas metade. E precisava da
Vida, assim como a Vida precisava da Morte para continuar sua arte tão querida.
Foi ali, então, no limiar
entre a Luz e a Sombra, no ponto de encontro entre a consciência e a inconsciência,
que a Vida e a Morte fizeram o amor acontecer pela primeira vez. Juntas, uma
dedicada ao abraço da outra, geraram uma nova forma de existência, jamais vista
em canto algum do universo.
O primeiro ser humano
nasceu em sua maior perfeição. Era a criatura mais completa, de forma
que nenhuma criatura pertencente à Terra jamais poderia a superar. A única com
o poder da Sabedoria, com o dom da Consciência e com a liberdade do Livre Arbítrio.
A única que poderia se conectar não só com a Vida, mas com a Morte também.
Mas existia um problema,
porque tanto a Vida quanto a Morte a queriam para si, e uma não poderia existir
no mundo da outra, de forma que a Morte destruiria a vida com a mesma
facilidade que a Vida destruiria a Morte, e nenhuma das duas gostaria que isso
acontecesse, pois juntas se sentiam completas.
Foi feito um acordo, então,
no sentido de criar-se uma regra acordada, consciente, baseada na mais pura confiança. A Vida e a Morte
poderiam conviver nos universos uma da outra desde que as duas estivessem
cientes das ações uma da outra. A Vida poderia criar tudo aquilo que quisesse,
quando quisesse, mas a Morte poderia pegar para ela as criações da Vida quando
achasse que tal coisa a pertencia.
Dessa forma, a Morte
permitiu que a Vida tomasse conta do bebê que elas fizeram juntas por 100 anos,
até que não aguentou mais e tomou a linda criatura em seus braços, transformando
sua forma física ao infinito de energia que existia na relação entre a Vida e a
Morte.
E a partir desse momento, não
existiu mais limite. Pois o mundo estava unificado em sua maior harmonia já vista
até então. A Morte anda pelos campos de Vida consciente, levando apenas aquilo
que desejava, com o consentimento da própria Vida.
A Vida, por sua vez, também caminha
no mundo da Morte. Entretanto, esse tipo de existência fica guardado em mistério,
só sendo desvendado por aqueles que, como o primeiro bebê, voltam conscientes
para a dimensão onde a Vida e a Morte fazem amor na maior paz já conhecida por
todos os tempos e espaços, fazendo viver e morrer tudo que se existe, em eterna
transformação.
“Se você parar para pensar, tudo aquilo que as pessoas
estão em contato todos os dias está dentro de uma força maior: a força da vida.
E as pessoas acreditam que todas as coisas estão dentro dessa força apenas, sem
se darem conta de que isto é apenas a metade de um todo. E
a segunda metade é justamente a morte.”
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