Princípio

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No começo, só existia a Morte.


A Morte, por sua vez, existia plena em sua solidão, que não a incomodava. Os dias a pertenciam, da mesma forma que as noites. O tempo não importava, pois tudo era eterno, e tudo estava a seu serviço. Ela era o todo, assim como não era nada, pois nada a completava.
Em uma era na qual a Morte era onipresente na Terra, o silêncio era extraordinário. Havia pureza, já que a luz nada mais era do que a própria luz; e a água nada mais era do que a própria água; e a Terra nada mais era do que a própria Terra. Essa realidade em que as coisas simplesmente eram elas mesmas irradiava uma tranquilidade transcendental.

A Morte conhecia tudo que existia, e quando descobria algo que não conhecia, ficava tão empolgada que rapidamente a tomava para si, voltando ao seu estado natural de contemplação.
Dessa forma, um dia qualquer, andando pelos cenários que tanto conhecia (e possuía), a Morte se deparou com uma coisa esquisita.
Não era nada que ela já tivesse dado um nome antes, e, portanto, a desconhecia completamente. Com um impulso natural, a Morte quis tocar aquela nova coisinha verde que transcendia a força da terra que a devia prender e desabrochava em novas formas nunca vistas antes. Queria pega-la para si, que era a Senhora de tudo que havia.
Mas, pela primeira vez desde os primórdios da existência, aquela coisa se desfez em suas mãos, transformando-se por completo e perdendo sua cor, sua luz e sua forma de ser.

A Morte ficou desesperada por algum tempo, sem entender o que havia se passado. Pela primeira vez, alguém havia desafiado sua vontade absoluta. Sentiu o que era angústia e descobriu o que era solidão. Queria voltar a ser dona de tudo, e queria que fosse do seu jeito, como sempre havia sido. Estava tomada por conflitos.
Seria possível que existisse algo mais forte do que ela?

Presa em sua indignação, a Morte se fechou e chorou por tempo que não saberia definir.
Quando finalmente conseguiu vencer seus conflitos interiores, levantou-se e percebeu que estava coberta de trevas. Tudo aquilo que conhecia estava apagado. A única coisa que conseguia enxergar era uma luz que definia uma linha fixa no horizonte, como se, naquele momento, a Terra que tanto conhecia estivesse divida entre Dia e Noite.

Timidamente, a Morte caminhou em direção àquela linha, sempre cautelosa e atenta, em meios às trevas que a dominavam. Felizmente, ela conhecia cada caminho e cada pedra, e conseguiu chegar à linha do horizonte não muito depois.
Ficou parada no limite entre a escuridão e aquele novo mundo que se abria a sua frente: uma confusão de cores e cheiros, formas das mais diversas  possíveis, explosões de novos barulhos, novos movimentos, novas formas de existência. Estava fascinada. Queria pegar tudo aquilo para si, mas como Senhora de sua própria sabedoria, agiu com cuidado, para não repetir os mesmos erros que já cometera antes em um passado distante e nebuloso.

E foi em meio a esse fascínio que, pela primeira vez, a Morte sentiu o que era amor. Ela amava cada ser que habitava aquele mundo estranho. Amava cada árvore que agora crescida trazia uma energia que jamais havia experimentado. Amava cada animal que jamais pensara em inventar. Amava cada pequena sincronia que existia naquele universo bagunçado e incrível.
Mas, acima de tudo, ela amava a essência daquilo que ela não era. Sentia que precisava da Vida como nunca havia precisado de nada antes. Precisava da Vida para ser um inteiro, pois havia existido até então sem saber que era apenas metade. E precisava da Vida, assim como a Vida precisava da Morte para continuar sua arte tão querida.

Foi ali, então, no limiar entre a Luz e a Sombra, no ponto de encontro entre a consciência e a inconsciência, que a Vida e a Morte fizeram o amor acontecer pela primeira vez. Juntas, uma dedicada ao abraço da outra, geraram uma nova forma de existência, jamais vista em canto algum do universo.
O primeiro ser humano nasceu em sua maior perfeição. Era a criatura mais completa, de forma que nenhuma criatura pertencente à Terra jamais poderia a superar. A única com o poder da Sabedoria, com o dom da Consciência e com a liberdade do Livre Arbítrio. A única que poderia se conectar não só com a Vida, mas com a Morte também.

Mas existia um problema, porque tanto a Vida quanto a Morte a queriam para si, e uma não poderia existir no mundo da outra, de forma que a Morte destruiria a vida com a mesma facilidade que a Vida destruiria a Morte, e nenhuma das duas gostaria que isso acontecesse, pois juntas se sentiam completas.

Foi feito um acordo, então, no sentido de criar-se uma regra acordada, consciente, baseada na mais pura confiança. A Vida e a Morte poderiam conviver nos universos uma da outra desde que as duas estivessem cientes das ações uma da outra. A Vida poderia criar tudo aquilo que quisesse, quando quisesse, mas a Morte poderia pegar para ela as criações da Vida quando achasse que tal coisa a pertencia.
Dessa forma, a Morte permitiu que a Vida tomasse conta do bebê que elas fizeram juntas por 100 anos, até que não aguentou mais e tomou a linda criatura em seus braços, transformando sua forma física ao infinito de energia que existia na relação entre a Vida e a Morte.

E a partir desse momento, não existiu mais limite. Pois o mundo estava unificado em sua maior harmonia já vista até então. A Morte anda pelos campos de Vida consciente, levando apenas aquilo que desejava, com o consentimento da própria Vida.
A Vida, por sua vez, também caminha no mundo da Morte. Entretanto, esse tipo de existência fica guardado em mistério, só sendo desvendado por aqueles que, como o primeiro bebê, voltam conscientes para a dimensão onde a Vida e a Morte fazem amor na maior paz já conhecida por todos os tempos e espaços, fazendo viver e morrer tudo que se existe, em eterna transformação.




“Se você parar para pensar, tudo aquilo que as pessoas estão em contato todos os dias está dentro de uma força maior: a força da vida. E as pessoas acreditam que todas as coisas estão dentro dessa força apenas, sem se darem conta de que isto é apenas a metade de um todo. E a segunda metade é justamente a morte.”  

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