Valores

22:26


As coisas têm a importância que nós damos a elas.

Estava sentada no ônibus pensando sobre a sincronia da vida e como nós nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Diferente do usual, dessa vez desci um ponto antes. O trânsito estava bem mais carregado do que o normal graças ao horário incomum, já que voltava mais cedo da faculdade, pois havia me esquecido que não teria aula no dia. 
Por isso, para chegar ao meu destino final, precisava esperar para atravessar uma rua que não tem sinal e que, nesse dia, estava particularmente impossível. 
Enquanto observava carro atrás de carro passando incansavelmente, um homem, apenas alguns anos mais velho do que eu, parou do meu lado, também esperando os carros nos darem uma trégua. 
Ele então começou a balbuciar algo muito baixo, as vezes olhando para mim, as vezes olhando para o simples nada. Tirei o fone de ouvido para tentar entender o que ele queria dizer, mas não consegui entender. 
Foi ai que reparei: ele estava descalço. Levava um saco de dormir embaixo do braço e sua roupa do corpo; mas não tinha sapato. 
Um garoto, de idade parecida com a minha, balbuciando sobre a vida com olhar vazio, e descalço! 
Parei. Meu mundo inteiro parou. Não conseguia mais prestar atenção em carro nenhum, em rua nenhuma, em cidade nenhuma. 
Só conseguia pensar em todos os meus sapatos, divididos em duas casas. 
E eu nem gosto de sapatos. Nunca gostei. Desde pequena era apaixonada por ficar descalça. Ate hoje, quando posso, aproveito para sentir um pouco a energia do chão. 
Fiquei lá. O ouvindo de longe. Focada em seus pés sujos, fortes e saudáveis. 

Mas de repente a realidade bateu a minha porta e me dei conta de que não estavam passando mais carros. Comecei a atravessar a rua, esperando que ele fosse vir também. Não veio. Chamei: "Vamos?". Ele veio. 
Ao chegar do outro lado da rua, não consegui me controlar. Tinha que perguntar.
"Por que você está  sem sapato?"
"Sapato? Não tenho dinheiro."
"Você quer o meu chinelo?"
Essa foi a primeira vez que ele olhou realmente para mim.
"Não. Eu quero um violão."
"Violão? Você toca?" - não poderia estar mais entretida. 
"Não. Mas preciso de um violão. Você tem?"
"Não tenho violão. Só tenho vários chinelos. Se tivesse um violão, te dava."
Ele sorriu. Disse que queria aprender a tocar música. 

Nosso caminho compartilhado chegou ao fim e eu me forcei a virar a esquina, contrariada. 
Perguntei mais uma vez se queria meu chinelo. Ele respondeu que não novamente. 
"Seu chinelo é de menina!"
Continuamos andando, agora em sentidos diferentes. Quase esbarrei com algumas pessoas que vinham em minha direção, pois ainda mantínhamos o contato visual fixo, inabalável. 

Falei então, com todo meu coração, concluindo nosso encontro:
"Boa sorte. Muitos violões para você!"
Ele sorriu com os dentes, e naquela expressão não se imaginaria jamais que um dia existiu um olhar vazio. 

Onde quer que esteja agora, que a música abrace seu caminho e te encha de paz e amor. Foi um prazer.


"Meias

Meias verdades
Meias vontades
Meias saudades

Viver pela metade é ilusão
Tire suas meias
Ponha o pé no chão"
(Augusto Barros)

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